segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Para além de nós

Antes de mais os olhos,
a líquida paisagem dos teus olhos
alimentando o rio dos meus dias.

Depois as mãos,
as translúcidas mãos que passeias no meu corpo
e lentamente se apropriam
de mim, como se eu fosse
simples matéria moldável.

E finalmente a voz,
essa voz de que vivo e nos transporta
para além de nós.

(2005)

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

A casa

A casa dos meus avós era à beira da estrada.
Quando a tarde caía, nós ficávamos à porta,
aspirando o ar fresco
que vinha dos lados da ribeira em frente.

Minha avó, que era muito bonita,
trazia sempre na cabeça o rasto de uma estrela
que caíra na noite anterior
e meu avô, que fora militar,
contava histórias da tropa com a alegria imensa
de quem estava a vivê-las de novo.

De vez em quando alguém passava e dizia boa tarde.
Minha avó respondia,
mas sempre duvidei de que, além de mim,
alguém mais visse o rasto da estrela
que ela trazia sempre na cabeça.

(2005)

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Por ti

Escrevi o teu nome em todos os lugares,
procurei-te sem fim nos dias mais incertos,
tive sede de ti na solidão dos bares
e fome do teu corpo em todos os desertos.

Fui soldado e lutei em busca do teu rosto,
que vi impresso a fogo em todas as esquinas.
Deixei que me queimasse a dor do sol de Agosto
e mergulhei sem medo em plagas submarinas.

Para te ter venci as longas avenidas
de todas as cidades que ninguém ousou.
E por ti viverei largos anos de vida
na ânsia de te dar tudo o que tenho e sou.

(2005)

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Nada de nada

Não tenho nada de nada.
Os bolsos cheios de coisa nenhuma
aquecem-me as mãos vazias.

Mas olha como bebo a madrugada
e te resgato da espuma
que me alimenta os dias.

(2005)

sábado, fevereiro 19, 2005

Aqui

Aqui nasci, aqui habito,
aqui fizeram
que fosse o meu lugar.
Aqui entre paredes me limito
à condição daquilo que me deram
na casa onde morar.

Daqui vejo uma pomba atrás do espaço,
procurando entre as asas capturá-lo.
Aqui tento encontrar-me no que faço,
aqui furando o medo acerto o passo
com os outros com quem a medo falo.

Aqui nasci, aqui habito,
aqui puseram
este meu corpo sem me consultar.
Mas é também daqui que lanço o grito
de que ninguém me há-de calar.

("Voz Suspensa", 1970)

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Voz suspensa

Porque tinha nos olhos primaveras
e louros nos cabelos o levaram
e, já preso na cela dos suplícios,
o mataram.

E porque sobre a boca tinha rosas
abriram-lhe a cabeça e procuraram
o segredo que tinha no seu rosto
mas não o encontraram.

E por ter sobre os dedos uma estrela
amarraram-no morto à sepultura,
mas, como a voz tem asas, ainda hoje
eles andam à procura.

("Voz Suspensa", 1970. Cantado por Luís Cília,
disco "Contra a ideia da violência, a violência da ideia",
editora "Le Chant du Monde", Paris)

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Tempo de perder

Tempo do teu olhar parado no meu tempo,
este tempo é o tempo de perder.
O resto é o silêncio, o contratempo
de se estar isolado e não saber
que os olhos não são estrelas, são sinais
a defrontar o tempo e nada mais.

Este tempo é o tempo de esquecer que somos
uma noite na noite ainda mais densa
que vivemos
até que não nos pertença
saber ao certo quem fomos
ou seremos.

("Voz Suspensa", 1970)

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Solidão companheira

Ninguém dirá que te perdi
e te procuro em qualquer parte.
Eu tenho a força que me vem de ti,
a força de inventar-te.

Por essa força criarei
tudo de novo e de maneira
que ninguém estranhe o nome que te dei,
solidão companheira.

("A Porta da Europa", 1978)

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Amor

Corpo feito da luz das alvoradas
e da matéria íntima dos sonhos,
procuro-te no vento entre as searas
dos teus flancos, que mais parecem ondas.

Modelo-te no espanto das marés,
as mágicas marés da minha infância,
e beijo a madrugada que tu és,
indiferente ao ruído e à distância.

(2005)

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Prece

Peço o meu pão
e a certeza de poder comê-lo
sem constrangimento.

E, se outra coisa peço, não
será mais que a tua mão no meu cabelo,
quando me toma o desalento.

("Voz Suspensa", 1970)

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Talvez

Talvez na noite inquieta o teu passo sereno,
a tua voz chegada do princípio de tudo,
as tuas mãos erguidas num aceno,
os teus lábios de quem vai beijar o mundo.

Talvez na manhã clara o teu corpo de fogo,
os teus cabelos leque de todas as cores,
os teus dedos correndo as ruas do meu corpo,
o teu odor a mar por onde quer que fores.

Talvez somente a luz do teu olhar,
o sol que deixas sempre em teu lugar.

(2005)

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Urgência

Falo de um país que sangra
e nunca mais direi ontem.
Recuso o pio da coruja
e a todo o avanço de uma voz inútil
oporei a dureza dos ouvidos.

Às plantas
pedirei que floresçam mais depressa.
E aos campos desolados
que se rasguem em trigo e o trigo em pão,
porque é urgente.

É urgente um país onde ser homem
corresponda a estar atento.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

A seiva

Quando em teu corpo a minha noite
não mais beber a seiva da ausência
e na curva perfeita do teu ventre
encontrar toda a sua transparência

e esplêndida escutar meu canto de ternura,
ave que sou rasante sobre a mágoa,
com uma seta de amargura
assestada a cada asa,

então direi que és a água
do poço da minha casa.

("Lucro Lírico", 1973)

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Esperança

Angústia tem um nome: é um navio
e junto à chaminé de todas a mais alta
os meus braços erguidos contra o frio
com que me vai doer a tua falta.

Angústia tem um nome: é este cais
da nossa raiva inútil e antiga.
É a faca do medo do não mais,
a navalha enterrada na barriga.

Por isso falo e só por isso digo
as palavras que inventam a lembrança
da festa, meu amor, de estar contigo.
E faço do meu frio a minha esperança.

("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Perfil

Se de ti colho as flores que em minha casa
fazem explodir de luz os corredores
e esqueço a solidão que trago acesa
acima de outras dores

se de lembrar-te apenas o perfil
mil vezes morro e sinto que outras mil
me cumpre renascer

se no teu corpo bebo a madrugada
que ladeia de sol a longa estrada
que tenho de correr

pois não hei-de cantar-te meu amor?

("Lucro Lírico", 1973)

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Nada

Não inventamos o amor,
nós não inventamos nada.
O amor é que nos traz
a vida reinventada.

Não inventamos, seguimos
apenas o fio da espada.

Apenas o fio que corre
na faca da madrugada,
quando a noite de tão clara
fica de todo adiada.

Não inventamos a dor,
a dor não foi inventada.
Nós apenas percorremos
a estrada já caminhada.

Não inventamos a sede.
Por dentro da boca seca
é que nos enreda a rede
da nossa culpa secreta.

Não inventamos o medo.
Vem lá de longe a palavra
com que moldámos a espada
que nos feriu muito cedo.

Nós não inventamos nada.

("Lucro Lírico", 1973)

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Manhã

Não me acorda a manhã.
Apenas o silêncio
no incêndio do meu quarto.

É o teu corpo nu,
essa boca omnipresente,
o duríssimo peito que me estendes.

Não me acorda a manhã.
Apenas esta fome,
a insuperável dor da solidão.

("Lucro Lírico", 1973)