quinta-feira, setembro 29, 2005

Quatro estações

No tempo em que eram quatro as estações do ano,
havia o Outono e tu chegavas.
Trazias o olhar cheio de marés
e enredados nos cabelos
restos de conchas, búzios, algas, essas coisas
que as ondas gostam de lançar à praia.

Embora tenha sido há muitos anos,
ainda lembro o desenho dos teus lábios,
de uma cor roubada
ao vermelho das arribas.

Estendias-me as mãos e eu procurava
agarrá-las como quem
no deserto encontra a água dos oásis.

Depois, vinha o Inverno e nós vivíamos
a mútua entrega dos nossos corpos jovens,
até sobrar da Primavera
um Verão à espera de outro Outono.

(2005)

segunda-feira, setembro 26, 2005

Desistência

Para lá da janela inoportuna,
no cinzento jardim da nossa desistência,
há plantas sem Primavera
em canteiros onde a seca
impede a floração.

Até parece que nos tolhe o medo
de avançar e partir os vidros
da inoportuna janela.

Ou já perdemos o sentido
da hora certa
para o que urge e é devido?

(2005)

quarta-feira, setembro 21, 2005

De manhã

De manhã, ao percorrer as ruas
do meu bairro lisboeta,
enternece-me a forma como
de janela a janela
velhos vizinhos se saúdam.

É como se em cada dia
redescobrissem
a surpresa-alegria
de ainda estarem vivos.

Há nesses gestos mais humanidade
que em toda a poesia
alguma vez escrita.

(2005)

segunda-feira, setembro 19, 2005

Desiguais

Nós não somos iguais.
Cada um tem
um código genético
que o distingue dos mais.
Jamais alguém
por milagre dialéctico
(está mais que visto)
logrará mudar isto.

(2005)

quinta-feira, setembro 15, 2005

Quase

É quase a hora de voltares
e eu te abraçar de novo.

É quase Outono, é quase o tempo
do tapete de folhas no jardim
que desenhámos para a vida.

É quase madrugada:
a alegria sem medida
de te ver regressada.

(2005)

sábado, setembro 10, 2005

A tua voz

Vivo da tua voz, o som magnífico
que me mantém desperto,
e tudo o mais que chega aos meus ouvidos
não passa de um ruído desconexo.

A tua voz tem timbre de guitarra
que, incendiando a noite, traz o dia
e as cordas de que se faz
são fios intermináveis de água límpida.

Ao ouvir-te, imagino-me num voo
em pleno céu azul além das nuvens,
ignorante de medos e de dúvidas
e feliz por te ter e ser quem sou.

(2005)