quarta-feira, agosto 30, 2006

Lisboa










Largo de Camões
Foto TL, 2006

Quando eu morrer
não me dêem o céu nem o inferno
e tão-pouco o purgatório.
Dêem-me antes as ruas de Lisboa
para eu correr à vontade
até à eternidade.

(2006)

segunda-feira, agosto 28, 2006

De longe










Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2006

Atravessamos a noite como quem de súbito
adivinha a manhã por entre risos e mãos dadas.
Tu tens o ar de uma vestal que se evadiu do paraíso
ou talvez de um quadro roubado ao Louvre
e eu perco-me nas ruas que confluem nos teus olhos,
certo de que nada de mal nos pode acontecer.

Nós viemos de longe, de onde o tempo se esqueceu
de quem somos, de quem fomos, e apenas
temos por nossas as palavras que nos servem
de alibi para o futuro que inventámos.
Nada nos move que não seja a líquida
superfície das coisas, a ambição que torna
verosímil a vida, se bem que injusta.

(2006)

quarta-feira, agosto 23, 2006

Prazo de validade









"Maternidade"
Almada Negreiros, 1935

Era tudo mais fácil se a maternidade
nos fixasse um prazo de validade.

A gente nascia, sim senhor,
quisesse ou não quisesse,
mas, por favor,
devia haver alguém que nos dissesse
de qualquer maneira
até quando durava a brincadeira.

Assim não vale, é tudo incerto,
nunca se sabe
o tempo que nos cabe
para vencer o deserto.

Era tudo mais fácil se a maternidade
nos fixasse um prazo de validade.

(2006)

segunda-feira, agosto 21, 2006





Foto TL, 2006

Já os olhos se enevoam
já a luz se desvanece
já o dia se faz noite
já se esboçam ameaças
já se afiam velhas facas
já a vida se suspende.

Já os olhos se incendeiam
já a manhã se adivinha
já a noite se faz dia
já se esboroam ofensas
já se renovam abraços
já a vida se reata.

(2006)

quarta-feira, agosto 16, 2006

O mar






Acrílico sobre tela
(pormenor)
Torquato da Luz, 2006

Ninguém está só se tem o mar por perto,
como aprendi no areal deserto
quando aí busquei em vão
silêncio e solidão.

Agora ao mar me confesso
sempre que tudo em redor
convida a desistir.

E nele recomeço
liberto de qualquer dor
a aventura de existir.

(2006)

quinta-feira, agosto 10, 2006

As mãos












Olha bem as minhas mãos, vê como são
esguias e têm linhas firmes e seguras,
os dedos longos e as veias salientes,
estas mãos de quem muito amou.

Olha bem as minhas mãos, segue o desenho
que deixam quando percorrem
os recessos do teu corpo,
esse castelo habitável
embora erguido sobre areia movediça.

Olha bem as minhas mãos, vai no seu rastro
e verás como estão limpas e se agitam
em busca do que me escapa
e procuro ainda.

(2006)

terça-feira, agosto 08, 2006

Viagem








Passavam automóveis, bicicletas,
velhas senhoras e atletas.
Passavam acrobatas, bailarinas,
muitos rapazes e meninas.
Passavam carros de bois
e trapezistas depois.
Passavam motas, camionetas
e largas resmas de poetas.
Passavam bandos de taratas,
padres, mendigos e beatas.
Passam bêbedos, drogados,
uns à paisana, outros fardados.
Passavam virgens, prostitutas
e lutadores de várias lutas.

Passavam e o encantamento
que deixavam à passagem
antecipava o momento
da minha própria viagem.

(2006)

sexta-feira, agosto 04, 2006

Lentamente






Acrílico sobre tela
(pormenor)
Torquato da Luz, 2002

Não nos pertence a noite nem o dia
nem a luz revelando o desalinho
em que ficou a nossa cama.
Tão-pouco nos pertence a maresia
que em nossos corpos como um vinho
lentamente se derrama.

Não nos pertence a clara madrugada
nem o pálido azul do fim de tarde.
Apenas nos pertence
esta dor que pensámos adiada
mas por dentro nos arde
e lentamente nos vence.

(2006)

quarta-feira, agosto 02, 2006

Ainda














Ainda a casa vermelha debruçada sobre a praia
ainda os barcos que chegam com peixes maravilhosos
ainda as grutas donde se volta bêbedo de luz
ainda as bugigangas e as bolas-de-berlim
ainda os chapéus de todas as cores
ainda o sol de fogo sobre a cabeça
ainda o ouro da areia sob os pés
ainda o mar a amar
ainda.

(Foto TL, Armação de Pêra,
1 de Agosto de 2006)