quinta-feira, setembro 30, 2010

À medida

Senhora da Rocha

O corpo esplêndido, o rosto
mais que perfeito e, no olhar,
a vastidão do mar
que atravessou em busca do meu porto.

Os lábios desenhados a rigor
para neles caber todo o sorriso
e mãos de quem oferece o paraíso
no exercício do amor.

Mas sobretudo o coração
a rebentar de ternura,
que é a maior formosura
de todas, sem contestação.

Um ser, em suma, à medida
do que se quer para a vida.

segunda-feira, setembro 27, 2010

Amar uma cidade

O pintor japonês M. Nagashima retrata o Príncipe Real pela milésima vez

Ama-se uma cidade, uma rua, uma casa
como se fossem nossas, mas não são
mais do que fogos fátuos da ilusão
a que chamamos vida, um ferro em brasa
que se crava na alma, com os seus medos,
portas cerradas, sombras e segredos.

E bem sabemos que, ao amar uma cidade,
uma rua, uma casa, outro qualquer lugar,
apenas exprimimos a vontade
de neles nos podermos espelhar.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Prazo de validade

Oceanário de Lisboa

Devíamos vir com livro de instruções
e prazo de validade
porque assim, valha a verdade,
é a maior das confusões:
a gente nunca sabe o dia e a hora
em que se irá embora
e, além do mais, em caso de avaria,
não dispõe de garantia.

Era também conveniente
haver livro de reclamações
onde qualquer cliente,
por menos exigente,
nos pudesse apontar imperfeições.

Mas, pelos vistos, não há
como mudar o que está.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Tudo passa

Travessa da Peixeira, a São Bento

Passam novos e velhos, passa gente
das mais diversas cores e feitios.
Passam corpos fantásticos, esguios,
e outros que apenas seguem na corrente.
Passam carros, comboios e navios
de longo curso e com destino urgente.
Passam aves traçando o transparente
voo por cima dos montes e dos rios.
Passam horas, minutos e segundos
nos relógios de todos os futuros
à espera do advento de outros mundos.
E passam nuvens branqueando o céu,
alheias a tristezas e a muros,
pois tudo passa e hei-de passar eu.

quinta-feira, setembro 16, 2010

Certeza

Jardim de São Pedro de Alcântara

Nada está garantido nem é certo,
tudo oscila entre o ser e o não ser,
tanto faz no mar alto ou no deserto,
aqui, além, onde a gente entender.
Não vale a pena futurar a vida
se esta se joga entre o azar e a sorte
e a única certeza garantida
tem um nome vulgar, chama-se morte.

segunda-feira, setembro 13, 2010

Um sopro

Acrílico sobre tela / TL, 2003

Não existimos, não, não existimos,
somos apenas um golpe de vento,
fruto fugaz de um vago pensamento
que nos dá a razão por que insistimos

em crer que, sendo livres, nos sentimos
no dever de afrontar o desalento
e de ir além deste breve momento
entre a espuma das ondas e os limos.

Não passamos de um sopro, um acidente,
leve agitar sem rumo nem sentido
de um raio de luz no meio da folhagem.

Mas, embora a tremer, fazemos frente
ao infinito mar desconhecido
e resolutos seguimos viagem.

quinta-feira, setembro 09, 2010

Sobre a poesia

Calçada da Pampulha

Deixa a poesia acontecer.
Não a programes nem insistas
em fixar-lhe o momento de aparecer.
A poesia só chega quando quer
e não costuma dar nas vistas.
O seu gozo é não ter dia nem hora
e por vezes demora
mais do que a gente conta.
Aliás, tanto lhe monta
que a esperes ou esqueças.
Ela virá quando vier
sem anúncios nem promessas
e para a receber
não te resta outro fado
que não seja estar sempre preparado.

segunda-feira, setembro 06, 2010

Antes de amanhecer

Escadinhas do Duque

Antes de amanhecer, isto é, no tempo obscuro
em que não cria ainda que pudesse haver
alguém igual a ti a marcar-me o futuro
do modo intenso que não era de prever,
eu caminhava inerme, crédulo e descalço
e o mundo à minha volta era um cenário falso.
Mas, quando tu chegaste, a noite recuou
e a vida fez-se o palco livre e luminoso
da peça onde me entrego inteiro como sou
àquilo que me inquieta e no entanto ouso.

quinta-feira, setembro 02, 2010

O ciclo das marés

Cais das colunas

Sentir ao acordar o travo amargo
de saber que a contagem se acelera
rumo à meta inevitável
e todavia ousar fazer-se ao largo
como se fosse sempre primavera
e o mar em frente navegável.

Conhecer mal o ciclo das marés
e o que transporta cada uma delas
nas ondas da liberdade
e mesmo assim tentar fincar os pés,
puxar dos remos ou içar as velas
sem receio de tempestade.

Pensar que a vida ainda vale a pena
quando o ar em redor nos envenena.